A Secretaria de Integridade Privada da Controladoria-Geral da União (CGU) lançou a Nota Técnica nº 3.657/2025, em resposta à consulta da Receita Federal do Brasil sobre a desconsideração da personalidade jurídica (DPJ) prevista no artigo 14 da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção – LAC).
Qual o objetivo da nota técnica?
Consolidar diretrizes sobre a aplicação excepcional da DPJ no âmbito do Processo Administrativo de Responsabilização (PAR).
O que esperar da DPJ em PAR?
A CGU reiterou a sua posição de que a DPJ deve ser utilizada com parcimônia e de forma excepcional, pois relativiza a autonomia patrimonial entre pessoas físicas e jurídicas. Contudo, reforçou o campo de autonomia discricionária da autoridade julgadora em face ao instituto, aplicável não apenas àqueles que executaram ou tiveram conhecimento do ilícito da LAC, como também aos que se beneficiaram, direta ou indiretamente, do abuso, fraude e confusão patrimonial.
Como o conceito de “benefício” é amplo, é importante que empresas participantes de operações societárias estejam atentas aos riscos da alargada abrangência da DPJ em PAR em negociações envolvendo empresas integrantes de grupos societários com histórico de ilícitos de integridade ou sucedidas por empresa com o mesmo objeto social e quadro societário de outra responsabilizada por violação à LAC, especialmente se licitantes ou celebrantes de contratos públicos.
Quais os entendimentos da CGU sobre DPJ em PAR?
- Cabimento: a DPJ pode ser aplicada diretamente no PAR, sem necessidade de incidente judicial, desde que garantido o contraditório e a ampla defesa;
- Pressupostos: prova robusta de abuso de direito no uso da pessoa jurídica para facilitar/encobrir/dissimular atos lesivos da LAC ou causar confusão patrimonial entre a empresa e quem detém poder de administração, de fato ou de direito, para ocultar ou facilitar atos lesivos;
- Requisitos: medida excepcional, motivada, com padrões probatórios claros e que demanda intimação específica dos potenciais atingidos para defesa no próprio PAR;
- Alvo: sócios e administradores, de direito e de fato (não sócios minoritários sem participação na administração), e terceiros beneficiados;
- Efeito: extensão das sanções da LAC àqueles que foram beneficiados, direta ou indiretamente, pela prática do ato lesivo, desde que tenham participado na sua execução ou ao menos tido conhecimento de sua prática; e
- Restrições: não se aplica automaticamente a: (i) empresas do mesmo grupo econômico (seguem regras de solidariedade e sucessão do art. 4º da LAC); (ii) negociação da propina ter sido feita por sócio ou administrador (é preciso comprovar se a empresa foi criada ou passou a ser utilizada de forma exclusiva, majoritária, habitual ou reiterada para facilitar, encobrir ou dissimular ilícito da LAC).
Por que isso é relevante para o seu negócio?
- Ajuda a mensurar o risco patrimonial pessoal para administradores e sócios-administradores em caso de abuso de direito que resulte em violações à LAC;
- Norteia padrões de governança e compliance que assegurem a segregação patrimonial entre empresa e seus sócios;
- Reforça a necessidade de due diligence anticorrupção, pelo potencial de impactar operações societárias (fusões, aquisições, reorganizações), pois a CGU entende que a DPJ: (i) se aplica a terceiros que tenham se beneficiado dos atos de abuso de direito, ainda que indiretamente; (ii) pode alcançar outras sociedades integrantes do mesmo grupo societário; e (iii) abrange pessoas jurídicas ulteriormente constituídas em uma primeira que foi utilizada indevidamente com o objetivo único de frustrar a aplicação das sanções da LAC (ex. para participar de licitações e celebrar contratos com o poder público); e
- Contribui para maior atenção em licitações e contratos públicos para evitar práticas que possam ensejar DPJ, inclusive aquelas específicas da Lei de Licitações (art. 160, Lei 14.133/2021).
Quadro sinóptico – Possível aplicação da DPJ em PAR
| Situação prática | Conduta | Dispositivo da LAC | Abuso de Direito | Aplicabilidade da DPJ |
|---|---|---|---|---|
| Empresa utilizada de forma exclusiva, majoritária, habitual ou reiterada para ilícitos da LAC | Uso de empresa para oferecer propina, para fraudar licitações etc. | Ilícitos do art. 5º | Desvio de finalidade | A quem detém poderes de administração (de fato e direito) |
| Empresa intermediária para pagamento de propina | Simulação de prestação de serviços para ocultar propina | Art. 5º, II (patrocínio de ilícito – intermediária) e I e III (corrupção e utilização de interposta pessoa pela contratante) | Fraude/simulação | A quem detém poderes de administração (de fato e direito) |
| Empresa de “fachada” para contratar com o poder público | Criação de empresa sem real capacidade operacional para ocultar beneficiário e contratar com o Poder Público | Art. 5º, III e IV (utilização de interposta pessoa e ilícitos em licitação/contrato com o poder público) | Desvio de finalidade, às vezes confusão patrimonial e fraude/simulação | A quem detém poderes de administração (de fato e direito), com análise de solidariedade/vínculos com outras empresas (art. 4º) |
| Conluio em licitação com empresas de grupo econômico que mutuamente se beneficiam | Combinação de propostas, divisão de lotes etc. | Art. 5º, IV (ilícitos em licitação/contrato com o poder público) | Desvio de finalidade | A quem detém poderes de administração (de fato e direito) e outras empresas do grupo (solidariedade – art. 4º, §2º) |
| “Caixa único” entre sócios e empresa que paga propina | Pagamentos pessoais com conta da pessoa jurídica (PJ), circulação de valores sem lastro | Art. 5º, I (corrupção, se vinculado ao ilícito) | Confusão patrimonial | A quem detém poderes de administração (de fato e direito) |
| Reorganização societária para evadir de multa da LAC | Fusão/incorporação/cisão simulada (após a investigação, sem finalidade clara) | Art. 4º, §1º e §2º (responsabilidade por sucessão ou solidária) | Fraude/simulação | A quem detém poderes de administração (de fato e direito), com análise de solidariedade/vínculos com outras empresas (art. 4º) |
| Transferência de ativos dos sócios após o ilícito da LAC | Esvaziamento patrimonial para evitar pagar sanções | Pode derivar de ilícitos do art. 5º | Desvio de finalidade, às vezes confusão patrimonial e fraude/simulação | A quem detém poderes de administração (de fato e direito) |
| Uso reiterado de várias empresas para participar de licitações e celebrar contratos administrativos | “Cadeia de empresas” para burlar sanções e manter relações com a Administração Pública | Art. 5º, IV (ilícitos em licitação/contrato com o poder público) | Desvio de finalidade de múltiplas empresas e fraude/simulação | A quem detém poderes de administração (de fato e direito), com análise de solidariedade/vínculos com outras PJs (art. 4º) |

